Histórias
das lutas na cidade de Rio Claro (2): as primeiras modalidades e o antigo
estilo de ensino e de treino
Histories of the fights in the city of Rio
Claro (2): the earliest modalities and the old style of teaching and training
Fernando Paulo Rosa de Freitas (Mestre em
Ciências da Motricidade Humana – UNESP – Rio Claro. Professor de Educação
Física da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo. E-mail:
fer_edfis@hotmail.com).
Resumo:
Esta é a segunda parte de um artigo que trata do processo histórico das lutas
ocorrido na cidade de Rio Claro, estado de São Paulo, Brasil. As informações
contidas nesse trabalho são resultado de pesquisa bibliográfica e entrevistas
com pessoas que têm ou que tiveram relação com as lutas e artes marciais
durante suas vidas. Tem como objetivo preservar e divulgar essas informações de
maneira geral e, em especial, subsidiar o ensino das lutas nas escolas.
Palavras-chave:
Lutas; História; Cidade de Rio Claro.
Abstract: This is the second part of an article that discusses
the historical process of the fights occurred in the city of Rio Claro, São
Paulo, Brazil. The information contained in this work is the outcome of
bibliographic research and interviews with people who have or who have had
relationship with the fights and martial arts during their lives. It aims to
preserve and disseminate this information in general and, in particular,
support the teaching of fights in schools.
Keywords: Fights; History; Rio Claro City.
Resumen: Esta
es la segunda parte de un artículo que analiza el proceso histórico de las
luchas que tuvieron lugar en la ciudad de Río Claro, Sao Paulo, Brasil. La
información contenida en este trabajo es el resultado de investigación
bibliográfica y entrevistas con personas que tienen o que han tenido relación
con las luchas y artes marciales durante sus vidas. Su objetivo es preservar y
difundir esta información en general y, en particular, apoyar la enseñanza de
las luchas en las escuelas.
Palabras
clave: Luchas; Historia; Ciudad de Río Claro.
As
primeiras academias e modalidades de lutas na cidade de Rio Claro
Ao questionar os participantes dessa pesquisa
sobre quem foram os lutadores pioneiros da cidade de Rio Claro, João Gonçalves
Filho e os irmãos Mubarack foram os mais lembrados.
De acordo com Luiz Carlos Mubarack, sua
família se mudou de Mirassol para Rio Claro quando ele tinha apenas dois anos
de idade. Seu pai veio para trabalhar como motorista na firma dos Saad, do ramo
da tecelagem. Como seu pai faleceu muito cedo, seu irmão mais velho, Uadi,
ajudou a cuidar dos irmãos mais novos: Paulo, Luiz, José e Neusa. Foi ele
também que os introduziu no mundo das lutas: “[...] O Uadi começou com os “halteres”.
Foi campeão paulista de levantamento de peso, no tempo do João Gil, que foi
campeão sul-americano. A primeira academia de halteres de Rio Claro foi do João
Gil, que era guarda rodoviário, e foi montada em sua própria casa. Depois dele,
o Uadi montou uma academia, já de luta, e também foi dar aula no Grêmio
Recreativo dos Ferroviários, onde só dava aula para os associados. Ficou muitos
anos lá. Começou com o jiu-jitsu, que ainda era sem tempo e só se vencia por
desistência. Depois, com o judô”.
Uadi Mubarack, por sua vez, havia aprendido
jiu-jitsu com João Gonçalves Filho, conhecido popularmente na cidade como
“Peixinho”. João Gonçalves Filho era nadador, jogador de polo-aquático e
faixa-preta de jiu-jitsu e judô. Foi ele quem trouxe essas modalidades de luta
para Rio Claro. Junto com o professor Uadi Mubarack, João Gonçalves Filho
fundou a Associação Gonçalves-Mubarack de Judô, a primeira academia de lutas da
cidade. Dos irmãos Mubarack, Uadi foi o único que competiu nas regras do antigo
jiu-jitsu. Seus irmãos (que ainda eram pequenos) começaram a competir somente
depois que a academia passou pelo processo de transição do jiu-jitsu para o
judô. Professor Luiz Carlos Mubarack relata que o judô era mais viável de ser
ensinado para as crianças do que o jiu-jitsu da época, e que esta transição
ocorreu quando ele tinha por volta de quinze anos de idade (final da década de
1950). Essa transição do jiu-jitsu para o judô, na época, representou a troca
de uma modalidade com acentuadas características marciais por outra mais
esportiva e educacional. Por essa época, o jiu-jitsu que havia sido a primeira
modalidade de luta em muitas cidades, quase que desapareceu das academias do
interior paulista. Essa mudança já havia ocorrido no Japão entre o final do
século XIX e início do século XX, segundo informa DiMarzio (2014):
“[...] mesmo que muitas escolas de jiu-jitsu tenham sido fechadas a
partir do momento em que Kano fundou o judô, ainda havia algumas funcionando.
No entanto, estas entraram em declínio, ao passo que, as de judô, dispararam em
popularidade não apenas no Japão, mas, mais tarde, no exterior (nossa tradução
– s.p.)”.
No Brasil essa situação perdurou até que os
desafios de “vale-tudo” da década de 1990 demonstrassem, mais uma vez, a
eficiência do jiu-jitsu em lutas desse tipo. Sobre essa fase, Serrano (2014a) diz
que [...] o jiu-jitsu saiu da “calmaria” e entrou novamente em “ebulição”,
repetindo-se a “fase áurea do Jiu-Jitsu de 1932, quando se impôs sobre todos os
sistemas de luta (p. 5 e 6)”. Para se firmar como esporte, no entanto, até
mesmo o jiu-jitsu passou por um processo de esportivização, com a adoção de
regras de tempo, pontuação, entre outras.
Falar de João Gonçalves Filho e dos irmãos
Mubarack, no entanto, mereceria um artigo a parte, dado a importância que representaram
para a divulgação e desenvolvimento do jiu-jitsu e do judô na cidade de Rio Claro,
no estado de São Paulo e no Brasil. A despeito de João Gonçalves Filho ter
participado como atleta das modalidades da natação e do polo-aquático em cinco
edições dos Jogos Olímpicos, atuou também como professor e técnico de judô de
medalhistas olímpicos do Brasil em outras duas edições. Suas conquistas esportivas
ainda podem ser rememoradas nos arquivos do Centro Pró-Memória Hans Nobiling,
do Esporte Clube Pinheiros, onde atuou como atleta e professor de diferentes
modalidades esportivas.
Figura 1: João
Gonçalves Filho, responsável pela introdução do jiu-jitsu/judô na cidade de Rio
Claro.
João Gonçalves Filho havia aprendido o
jiu-jitsu com Carlos Gracie. Com esse conhecimento técnico e um condicionamento
físico excepcional, além das competições esportivas de que participava,
costumava lançar desafios de luta em portas de fábricas para ganhar algum
dinheiro extra. Como técnico de judô, João Gonçalves Filho treinou medalhistas
brasileiros em Jogos Olímpicos como Douglas Vieira, Aurélio Miguel e Leandro
Guilheiro. Com larga e diversificada experiência esportiva, com formação em
Direito e Educação Física, João Gonçalves Filho integrou a comissão técnica da
Seleção Brasileira de Judô, onde incentivou o treinamento com pesos.
Incentivava seus atletas a treinarem até a exaustão, afirmando que “treinamento
é sofrimento” (Kaiser, 2010).
Os irmãos Mubarack, por sua vez, permaneceram
atuando na cidade de Rio Claro e nas cidades vizinhas, onde formaram gerações
de lutadores. Também formaram equipes muito fortes de judô, destacando-se
primeiramente na região (antes de se filiarem a Federação Paulista de Judô),
depois no Estado de São Paulo e, finalmente, no Brasil. Integravam essas
primeiras equipes de judô de Rio Claro os irmãos Mubarack (José, Uadi, Paulo e
Luís) mais um ou dois lutadores de fora, como Claudio Salvador Munno, da cidade
São Carlos, também conhecido pelos apelidos de “Claudião” ou “Robô”.
Figura 2: Equipe de
judô de Rio Claro (da esquerda para a direita: José Mubarack, Claudio Salvador
Munno, Uadi Mubarack, Paulo Mubarack e Luiz Mubarack).
Além do pioneirismo nas modalidades do
jiu-jitsu e do judô, a academia “Gonçalves-Mubarack” abriu espaço para outra
modalidade que quase não existia no interior paulista: o karatê. Luiz Carlos
Mubarack conta que “[...] nos anos 1970, essa era uma modalidade que quase não
se via por aqui, então, trouxemos um aluno de Agronomia de Piracicaba,
faixa-preta de karatê, para dar aulas na academia que tínhamos aberto naquela
cidade e, também, em Rio Claro. Terças e quintas era karatê e, segundas,
quartas e sextas, judô. Então o karatê começou assim, porque, antes, só era
treinado em São Paulo (capital)”.
Ari de Mello, que era aluno de judô na
Associação Gonçalves-Mubarack nos anos 1970, relembra desse fato afirmando ter
solicitado ao professor Uadi Mubarack para que trouxesse um professor de
Kung-Fú para a academia. Influenciado pelos filmes de Bruce Lee, desejava
experimentar outro tipo de luta. Trouxeram, então, o professor de karatê de
Piracicaba, Seijun Kanashiro, faixa-preta de 3º grau, estilo Shorin-Ryu. Ficaram quatro anos com esse professor.
Seijun Kanashiro, depois de se formar na universidade, deixou de vir para Rio
Claro, pelo que professor Ari de Melo trouxe outro instrutor de karatê para dar
continuidade aos treinamentos, o professor Milton Lopes Balestero, da cidade de
Jaú. Ari de Mello, que na época era representante comercial de uma indústria de
bebidas, afirma que: “[...] levava meu quimono no carro e, em qualquer cidade
onde houvesse uma academia, parava para treinar”. Em uma dessas viagens
conheceu o professor Milton Lopes Balestero, que era de outro estilo de karatê,
o Shotokan. A partir desse contato, conseguiu que esse professor viesse, uma
vez por semana, dar aula na academia do professor Uadi. Nas outras duas aulas
da semana, em que esse professor não estava presente, ele ou outro aluno mais
graduado repetia o que haviam aprendido na aula daquele professor. A partir do
professor Milton Lopes Balestero, Ari de Melo entrou em contato com Juichi
Sagara, da capital, que foi seu sensei
(ou professor, mestre) até o final de sua vida.
Figura 3: Alunos de
karatê posam na arquibancada da Associação Gonçalves-Mubarack de Judô, no
início da década de 1970. Ao centro, de blusa escura, Milton Lopes Balestero. À
sua direita, Juichi Sagara. À sua esquerda Ari da Silva Mello Filho. À sua
frente, Antônio Roberto Bendilatti.
Desse primeiro grupo de praticantes de karatê
em Rio Claro também fez parte Antônio Roberto Bendilatti, popular “Shú”, que
começou treinando judô e chegou a jogar futebol profissional pelo Rio Claro
Futebol Clube. Professor Bendilatti lembra que: “[...] Nessa época, além dos
treinos na Associação Gonçalves-Mubarack, junto com um grupo de amigos,
alugamos um salão na Rua 6 com Avenida 20 para treinar karatê, capoeira... mas
ninguém sabia nada. Então virava uma pancadaria. Compramos um encerado e
fizemos um tatame de dois centímetros que era duro como o chão. Não tinha
equipamento nenhum, nem água para beber. O Jaime Polido [1] participou disso e, como era
o mais velho, era ele quem botava ordem. Alugamos o salão só para brigar entre
a gente. Ninguém de fora participava”.
Depois que o professor Milton Lopes Balestero
deixou de dar aulas na Associação Gonçalves-Mubarack, Ari de Mello montou sua
própria academia, a Associação Rioclarense de Karatê. Professor Roberto
Bendilatti assumiu, então, as aulas de karatê na Associação Gonçalves-Mubarack,
até montar sua própria academia, atualmente, Shú Academia.
As
dificuldades dos pioneiros e as diferentes linhas de ensino dos antigos mestres
Para tratar das dificuldades para se treinar
uma luta na cidade em décadas passadas e, também, sobre os estilos de ensino de
alguns dos antigos mestres, importantes informações apareceram nos relatos do
professor Antônio Roberto Bendilatti. Ele lembra que, quando começou a dar
aulas de karatê na Associação Gonçalves-Mubarack era recém-casado, e ainda
trabalhava com caminhão: “[...] Fazia entregas de bebidas durante o dia e dava
aulas de karatê à noite”. Com o afastamento de seus primeiros professores
passou a treinar com o sensei Yashiki
Mishima, de Campinas, ainda como faixa-marrom. Toda a sexta-feira viajava para
aquela cidade para participar dos treinos da noite e do dia seguinte. Às vezes
ia de trem, às vezes de carona. Para voltar para casa, relata que chegou a
entrar em um trem sem dinheiro para pagar a passagem, e teve que descer em
Americana porque um guarda o apanhou. Relata ainda o duro método dos antigos senseis e a maneira como os alunos
obedeciam a suas ordens sem questionamento: “[...] Certa vez o professor
Mishima me avisou que eu ia fazer uma demonstração de quebra de tábuas e eu nunca
tinha feito aquilo. No intervalo de um jogo de basquete em um ginásio de
Campinas, com grande público, eu tive que quebrar uma tábua com um chute. Não
consegui no primeiro golpe e, no segundo, já quase sem conseguir encostar o pé
no chão, acabei quebrando a tábua”. Relata ainda que “[...] a disciplina era
rígida e, o respeito pelo professor, nem se fala! Quando o professor ia dar
aula, você já tinha que estar esperando no dojô.
Se o professor já tivesse feito o cumprimento inicial e você não estivesse no
tatame, não participava mais da aula”.
Sobre o perfil dos alunos de karatê daquela
época professor Bendilatti afirma que eram todos amigos, mas, quando iam lutar,
entravam para bater. Acredita que o treino era mais “sério” ou “forte”.
Considera que o perfil dos alunos que procuravam uma academia de karatê para
treinar naquela época era diferente. “[...] Eu mesmo, entrei na academia para
aprender a me defender, para não apanhar na rua, vamos dizer assim, para
brigar. Hoje ninguém entra para brigar, mas para interagir com as pessoas, para
a saúde, para a coordenação motora... Às vezes um médico também indica o
treinamento por causa de um problema, para ter uma disciplina, para ajudar na
educação, em particular, das crianças”.
No início da década de 1980, professor
Bendilatti resolveu se dedicar ao ensino da karatê, deixando de trabalhar com o
caminhão. Relata as dificuldades desse período e a nova troca de professor.
Passou a treinar com sensei Takashi
Shimo, de Ribeirão Preto. Começou também a dar aulas em São Carlos, na academia
do “Robô”. Lembra-se dos desafios que aconteciam nessa época e da forma como
encarava tais situações: “[...] Certa vez apareceu um rapaz do Rio de Janeiro
na academia de São Carlos e perguntou se poderia lutar com o professor. A resposta
foi: Pode. Vamos lutar já! Naquela época a gente achava que tinha que ser
homem, tinha que provar alguma coisa. O professor colocava na cabeça da gente
que você não podia ter medo de nada e, a gente acabava não tendo medo. Tanto é
que se o Takashi mandasse a gente pular daqui para baixo (se referindo a janela
do prédio onde cedeu a entrevista), era capaz que a gente pulasse mesmo, pois
era uma obediência muito cega ao professor”.
A maneira como o professor Bendilatti descreve
o antigo entendimento da prática da arte marcial pode oferecer uma boa
ilustração das influências que cada professor, com suas diferentes atitudes e
estilos de ensino, deixou para cada um de seus alunos: “[...] quando aquele
carioca foi me desafiar, eu já não tinha medo de apanhar, porque, o que eu
apanhei do Takashi uma vez... Nossa!”. Até para começar a treinar com o sensei Takashi Shimo foi uma dificuldade
para o professor Roberto Bendilatti, pois, inicialmente, este não o queria
aceitar como aluno. Talvez como uma forma de testar sua determinação em treinar
em seu dojô, professor Takashi chegou
a lhe negar a participação em suas aulas por duas vezes. Sem dinheiro para
tantas viagens, na terceira vez que professor Roberto Bendilatti voltou à
academia do sensei Takashi, que
ficava em Ribeirão Preto, não aceitou nova resposta negativa e disse que, se
não o aceitasse como aluno, iria ficar sentado em sua porta até que o
permitisse treinar: “[...] Não sei se ele gostou do que eu disse e, então, me
deixou treinar. Colocou todos da academia para baterem em mim. Não foi bem uma
luta, mas me colocaram na parede para servir de alvo para as entradas de kizami (tipo de soco que corresponde ao jab do boxe). Todos batiam e, batiam
forte. Tanto no estomago como no rosto. A ordem do Takashi era bater mesmo. Eu
segurava os meus golpes, pois era novo ali. Fazia uma entrada no Takashi e
segurava o golpe a certa distância, enquanto ele acertava todas. Tanto é que eu
fiquei com a boca toda marcada por dentro, toda preta”. Esse tipo de
treinamento, por mais duro e incompreensível que possa parecer na atualidade,
era comum tanto no karatê como em outros tipos de lutas, como podemos verificar
no relato do professor de boxe José Roberto da Oliveira: “[...] os caras nem
tinham estreado como lutadores e já tinham a cara toda quadrada de tanto levar
bordoada, [...] era do jeito que eles (os técnicos) tinham aprendido: era briga
mesmo, era pauleira (Freitas y Matthiesen, 2016)”.
No
karatê, esse tipo de treino violento correspondia ao seu aspecto marcial: mais que
alunos que pagassem mensalidades, alguns
senseis só aceitavam alunos que seguissem seu perfil, obedecessem a
disciplina e hierarquia e, sobretudo, que tivessem coragem e muita vontade para
treinar. Essa regra, logicamente, não se aplicava as crianças e iniciantes. Por
outro lado, alunos já graduados e provenientes de outras academias ou
modalidades de luta, normalmente, passavam por esse batismo de fogo, por
diferentes razões: a desconfiança de quem vinha de fora, a rivalidade com
outras academias e, especialmente, para deixar bem claro a questão da hierarquia.
Para ser um professor de karatê, então, não era admissível que uma pessoa não
tivesse ao menos essas qualidades. Na outra ponta, a razão para que o Professor
Roberto Bendilatti tenha procurado treinar com sensei Takashi Shimo foi a admiração que passou a ter por sua
técnica, após vê-lo lutar em um campeonato.
Figura 4: Senseis Takashi Shimo e Antonio Roberto
Bendilatti (faixas-pretas ao centro).
Sensei Takashi Shimo foi, realmente, um dos grandes
expoentes do karatê brasileiro. Sua maneira de treinar e ensinar o karatê, no
entanto, se aproximava muito mais das origens marciais japonesas do que de seu
aspecto esportivo. Professor Roberto Bendilatti lembra que, “[...] logo depois
que sensei Takashi me aceitou como
aluno, recebi uma ligação dele dizendo que haveria um treino em uma
terça-feira, às nove horas da manhã. Cheguei lá na academia e perguntei se os
outros alunos estavam atrasados. Não, ele respondeu. Vamos treinar só nós dois.
Fiquei feliz da vida e pensei assim: hoje vou aprender muito karatê, uma aula
particular, praticamente. Então ele fechou a porta e começamos a treinar.
Aquecemos rápido e fomos treinar para uma competição, que ambos iriamos
participar. Aí ele bateu, mas bateu muito mesmo. Cheguei na rodoviária e tive
que segurar as mandíbulas para tomar um suco, de tanto que doía. Cheguei em
casa muito mal. Olhava para o chão e parecia que o rosto ia cair. Depois desse
treino ele ainda avisou que, na quinta teria treino de novo e... acabei voltando”.
Analisando esse relato, podemos também avaliar
o perfil das pessoas que se dispunham a passar por tais situações. Era o tipo
de aluno buscava o desafio, a dificuldade e, especialmente, a superação. Coisa
fácil não era bem vista. Roberto Bendilatti afirma que “[...] o gostoso disso
aí era que a gente não pensava muito se ia bater ou apanhar. Era como um
desafio assim: eu tomei um golpe e eu não caí. Parece que era mais gostoso esse
sentimento de... eu não tive medo... de não entregar”. Esse tipo de atitude
tinha até seus próprios bordões, como: “um homem tem que morrer para frente”.
Exemplos de como essas práticas forjavam as atitudes dos lutadores foram as
competições vencidas pelo professor Bendilatti de maneira dramática: “[...] Nos Jogos Regionais de de 1986, em
Piracicaba, venci o torneio de lutas na categoria e no absoluto, fazendo a
final com o braço quebrado. Outra vez, levei um golpe na boca que me arrancou o
dente da frente. Segurei o dente na boca e voltei para a luta para fazer o
mesmo com o adversário. Somente quando o árbitro veio me advertir foi que cuspi
o dente no chão para mostrar a razão da minha atitude”.
Esse aspecto marcial, remanescente nas lutas
que passavam pelo processo de esportivização, sempre foi motivo de
controvérsias e acidentes: seria a arte marcial karatê mais arte (controle,
esportividade), ou, mais marcial (budô)?
Na verdade, o karatê passava pela transição de seu aspecto predominantemente
marcial para o esportivo. Essa transição, no entanto, era (e por vezes, ainda
é) vista de formas diferentes pelos seus professores: para alguns representava
um avanço, enquanto, para outros, a perda da essência. A partir desses
diferentes entendimentos, cada professor e, por consequência, alunos dava maior
ou menor ênfase a um desses aspectos em seus treinamentos. Por essa mesma
situação passaram outras artes marciais, como foi o caso da transição do
jiu-jitsu para o judô, fato aqui já mencionado e também retratado no primeiro
filme de Akira Kurosawa: “A Saga do Judô”.
Em um trabalho de Drigo (1998), em que professor
Uadi Mubarack foi entrevistado, pode-se perceber a dificuldade que muitos dos
antigos tinham para entender o que era uma luta esportiva, pela seguinte
afirmação: “[...] No início ninguém entendia o que era judô. Achavam que era um
esporte que um arrebentava o outro (p.31)”. Professor Uadi descreve ainda a
evolução do jiu-jitsu e do judô:
[...] Antigamente era defesa pessoal, depois foi formando campeonato.
Antes não havia peso, então, foi colocado peso. Virou um esporte. A mudança
para um esporte foi uma mudança positiva, os judocas treinam para conquistar
títulos, para melhorar a saúde, para sua própria defesa. Em tudo na vida o
homem quer ser vencedor, mas também tem que ser um vencedor com respeito.
Passar o judô para o esporte foi um benefício (p.32).
Voltando ao karatê, além dessa compreensão bipolar sobre a identidade da
modalidade, outros fatores colaboravam para que houvesse acidentes em suas
lutas de semi-contato: a falta de regras que incluíssem protetores de mão
(adotados a partir de meados da década de 1980); a falta de habilidade de
alguns lutadores para segurar o golpe, ou; lutadores que gostavam de bater um
pouco mais forte, a despeito da possibilidade de serem desclassificados. A
tática também não ajudava: a maioria das lutas ainda tinha como característica
poucos deslocamentos e, os recuos representavam um recurso de defesa utilizado
por pessoas de menor coragem. Quando o juiz dava o início de uma luta, então,
partia “um de lá e um de cá” e, ganhava o ponto quem chegasse primeiro. Era
preciso coragem para entrar junto (deai)
nesses choques de velocidade, sem qualquer tipo de proteção nas mãos.
Identificar a intenção de um lutador ou sua habilidade de controlar um golpe,
no entanto, era algo muito difícil. O negócio era “ficar esperto” e se adaptar
no transcorrer da luta.
Mesmo com a esportivização do karatê, a
formação do espirito combativo continuou a ser incentivada por muitos senseis e desenvolvida por meio de
rígidos treinamentos, muito próximos de um combate real. Esse sofrimento
durante os treinos visava facilitar as coisas na hora das lutas, um conceito
muito próximo a formação militar. Para a grande maioria dos lutadores, no entanto,
os treinos eram (e ainda são) apenas uma parte do sofrimento: andar muito de
carona, viajar para campeonatos com pouco ou sem nenhum dinheiro, dormir em
qualquer lugar, ficar distante da família... Muitos dos pioneiros das artes
marciais da cidade tiveram que andar bastante e pagar um alto preço para,
simplesmente, aprenderem sua arte.
Tratando ainda dos estilos de ensino dos
antigos professores, Ari de Mello destaca a maneira como Juichi Sagara, seu
último sensei, entendia e ensinava o
karatê. Relata que sua postura mais maleável, além de preparar o aluno para o
combate, também os preparava para o convívio pacífico em sociedade. Incentivava
também o intercâmbio e permitia que seus alunos treinassem com outros mestres,
coisa difícil de acontecer até mesmo nos dias atuais. Sobre essa questão descrevia
o seguinte ditado: “[...] Sapo de lagoa desconhece o oceano”.
Sensei Juichi Sagara, como relata Ari de Mello,
desenvolveu o que chamou de karatê tridimensional: espirito, mente e corpo
(físico): “[...] O espirito manda, a mente obedece e o corpo acompanha, sempre
seguindo essa ordem”. Outros aspectos dessa filosofia tridimensional também
eram observados em sua metodologia de ensino do karatê: “[...] Kihon (exercícios de base), kata (formas coreografadas de lutas) e kumite (luta real). Se você não fizer
bem o kihon, não faz bem o kata. Se não fizer bem o kata, não faz bem o kumite”. Fazendo uma transposição para outros aspectos de sua vida,
Ari de Mello observa outras facetas da tridimensionalidade: “[...] tudo na vida
é tridimensional, se você analisar. Família: pai, mãe e filho. A santíssima
Trindade... Se faltar um desses elementos, não há equilíbrio”.
A despeito das influências deixadas pelos
antigos mestres e pelos diferentes métodos de treinamento e de ensino, foi
interessante notar o aprendizado individual alcançado por cada um desses
professores, advindos também de suas experiências de vida e dos rumos que
tomaram após o falecimento de seus respectivos senseis.
Sensei Takashi Shimo faleceu no ano de 1995, vítima
de câncer. Em fato presenciado por essa autoria, durante uma competição realizada
na cidade de Leme, sensei Takashi
Shimo, já em fase adiantada da doença que o vitimou, fez uma homenagem
emocionante a professor Antônio Roberto Bendilatti, lhe entregando sua própria faixa.
Entre tantos alunos que alcançaram destaque no karate, era como se professor
Bendilatti fosse o mais próximo.
Sensei Juichi Sagara, por sua vez, faleceu no ano de
2001. Era irmão de Antonio Inoki, lutador de karatê e wrestling, que ficou famoso por lutar com o campeão mundial de boxe
Muhammad Ali, no ano de 1976. Tinham sobrenomes diferentes, pois, sensei Juichi Sagara havia herdado o
sobrenome de sua mãe a fim de dar continuidade ao nome de sua família, já que
esta não teve irmãos homens. Por obra do destino, sensei Sagara também não deixou filhos.
Professor Roberto Bendilatti relata que, após
a morte de sensei Takashi Shimo,
manteve um sistema rígido de ensino por algum tempo, mas, aos poucos, foi se
tornando mais flexível. Isso ocorreu por influência de algumas aulas que
começou a acompanhar na Universidade Estadual Paulista, a UNESP, de Rio Claro
(onde realiza estudos de biomecânica, tempo de reação, entre outros, junto ao
Prof. Dr. Mauro Gonçalves), pela aproximação com a palavra de Deus e, também,
pelas mudanças da própria sociedade: “[...] Ainda hoje, às vezes, sou um
pouquinho duro com os alunos. Chego a não dormir, às vezes, pensando naquele
aluno que dei bronca, desejando que logo chegue a outra aula para que eu possa
conversar melhor com ele. Mas é que levo o karatê a sério, ajudo e cobro das
crianças a questão da escola, da importância de manter a atenção. Falo sobre a
questão das drogas. A minha aula também é educativa e minha intenção é cobrar a
máxima capacidade de cada aluno”.
Professor Ari de Mello, por sua vez, descreve
(de maneira emocionada) uma experiência ocorrida quando dava aulas de karatê
nas escolas municipais de Rio Claro. Diz como lidou, certa vez, com um aluno
problema: “[...] Uma vez, a diretora de uma das escolas em que eu dava aula
chegou para mim e disse que um dos meus alunos tinha mordido uma professora.
Pedi então para que ela tocasse nas costas do garoto para eu saber quem era,
sem que o identificasse publicamente. A partir daí, trouxe esse garoto para
perto de mim como uma espécie de ajudante. Uma vez esse aluno me chamou e disse
que seu pai havia sido preso por ter esfaqueado outro homem. Acabei entendendo
a influência da família em seu comportamento. No dia da formatura da turma,
esse era o aluno que mais havia se desenvolvido”.
Tanto professor Ari de Mello quanto os
professor Antônio Roberto Bendilatti relatam as contribuições que deram para a
formação de seus alunos, tendo afastado alguns dos vícios, da violência, além
de ajudá-los em muitos problemas pessoais. Ainda assim, nem mesmo eles
conseguiram escapar de problemas como a violência. Professor Ari de Mello,
certa vez, foi assaltado em sua casa e teve de reagir, o que resultou na morte
de dois assaltantes. Professor Roberto Bendilatti, por sua vez, foi vítima de
um acidente, ocasionado por um assaltante que estava em fuga em uma moto. Esse
acidente, ocorrido no final do ano de 2012, o deixou acamado por seis meses.
Afirma que aprendeu muito com essa situação, pois, de volta ao trabalho, ainda
de muletas, teve “[...] que aprender a dar aulas sem poder demonstrar”.
A despeito de todas essas lutas ambos
construíram suas vidas a partir do ensino do karatê, mesmo que tenham se
dedicado a outras atividades profissionais. Mencionam também as muitas alegrias
e amizades que o karatê lhes trouxe.
Sobre os estilos de ensino das novas gerações
de professores de lutas e artes marciais, seria interessante analisar, além das
influências dos antigos mestres, a realidade do “mercado” atual e o aprendizado
adquirido por meio da formação formal e informal.
Das irmãs Pessoa que se tornaram faixas-pretas
de judô, por exemplo, Soraia, que agora atua na área da educação, relata a
maneira exigente como seu pai as ensinou nessa modalidade, tanto no aspecto
técnico como no disciplinar. Acredita que essas cobranças ajudaram a moldar uma
personalidade forte, determinada e com gosto pelo desafio. Analisa que essas
características foram transferidas para seu trabalho. Confirmam essas
informações o relato de sua irmã Simone, que deu continuidade ao ensino do judô
e do jiu-jitsu na academia da família. Diz que: “[...] Sigo a metodologia do
meu pai, do ensino passo a passo, do cuidado com a parte técnica, para que não
se criem vícios”. Da mesma maneira, cobra a disciplina dos seus alunos: “[...]
Das crianças exijo boletim com boas notas, instruo para tenham uma alimentação
saudável. Depois das férias pergunto que livros leram, se brincaram bastante e,
se fizeram uma boa ação. Peço para falarem”. Relata ainda que o cuidado com o
aspecto disciplinar e educativo no ensino de uma arte marcial é uma das
expectativas dos pais que encaminham os filhos pare treinarem em sua academia.
Observa, porém, que apesar de seguir uma didática tradicional, foi necessário
ser tornar mais flexível com a disciplina, pois as crianças mudaram. “[...] As
crianças de hoje têm menos vontade e disciplina, além da concorrência com
outros interesses, como os jogos eletrônicos e a internet”. Atenta a parte
ética e disciplinar, diz que não dá faixa para quem não merece e, merecer, não
significa ter apenas o conhecimento técnico, mas uma boa atitude. Também não
abre mão da disciplina em troca pelo lucro. Citando outros aspectos de sua
maneira de ensinar, Simone Pessoa relata que busca a autonomia de seus alunos,
pelo que os coloca, por vezes, para puxar partes do treino. A fim de ensinar a
humildade e, com os devidos cuidados e orientação, coloca alunos com tamanho
físico e níveis técnicos diferentes para treinarem juntos. Sua preocupação com
o aspecto educacional e social, no entanto, vai além do ensino de seus alunos:
oferece bolsas a alunos carentes, estende suas aulas a projetos sociais de duas
igrejas e realiza um trabalho junto às polícias para tentar melhorar a
abordagem e a autoconfiança desses profissionais.
Outro relato muito interessante sobre a
maneira como alguns professores aliam o treinamento das lutas com questões
educacionais provém dos irmãos Leonardo e Breno Macedo, lutadores e técnicos de
boxe. Ainda muito jovens, mas, com extensa bagagem na formação de jovens lutadores,
trazem para suas aulas as influências de sua formação universitária: “[...]
toda a sexta-feira trazemos um texto para discutir com os alunos, sobre
negritude, política, história...” Observam que os estudos os têm ajudado no
trabalho como técnicos e professores.
Referências
DiMarzio, D. (2014). Jujutsu in Japan to Brazilian jiu-jitsu in
America. Winds of Japan Shop.
Drigo, A. J. (1998). Reflexões
sobre a história do judô no Brasil: a contribuição dos senseis Uadi Mubarack
(8º Dan) e Luis Tambucci (9º Dan). (Trabalho de Conclusão de Curso).
Faculdade de Educação Física. Universidade Estadual Paulista. Rio Claro.
Freitas, F. P. R., y Matthiesen, S. Q. Os filhos do seu Zé Roberto:
memórias do boxe. EFdeportes.
Recuperado el 07 de septiembre de 2016 de:
http://www.efdeportes.com/efd190/seu-ze-roberto-memorias-do-boxe.htm
Kaiser, M. (2010) O herói oculto. Trip,
194. Recuperado el 26 de julio de 2015 de:
http://revistatrip.uol.com.br/revista/194/reportagens/o-heroi-oculto.html
Serrano, M. (2014a). O livro
proibido do jiu-jitsu: A história que os Gracie não contaram. (2ª ed.) v.
1.
[1] Jaime Polido, faixa-preta 6º
grau de judô, foi professor dessa modalidade na academia do CSU João Rehder
Neto, em Rio Claro. Dentre os entrevistados, professor Jaime foi o mais idoso.
Seus relatos confirmam as histórias dos circos, dos personagens aqui
mencionados e das antigas brigas. Relata ainda a existência de um grupo de
ferroviários da antiga Companhia Paulista que treinava e brigava com bastões.
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